No mês da Mulher, o Conselho Federal de Química (CFQ) resgatará, nesta série de textos em dois episódios, a trajetória de uma personagem decisiva de sua História: a vida e a obra de Hebe Helena Labarthe Martelli (1919-2013), a primeira e única mulher a, até o momento, ocupar a presidência do CFQ. Dotada de uma mente brilhante, competência notória, ousadia e pioneirismo em um ambiente nem sempre amigável para as mulheres, Hebe Helena Martelli marcou uma época na Ciência e contribuiu decisivamente para a consolidação da Química e de seus profissionais no panteão das atividades mais respeitadas pelo Brasil. Boa leitura.
Era ainda a segunda década do Século XX quando, em meio aos marcos tortuosos que definem a movediça fronteira seca entre o Brasil e o Uruguai, mais um casal se formava. Ela, uma jovem uruguaia da cidade de Rivera; ele, um brasileiro do outro lado da rua que separa os dois países, em Santana do Livramento (RS). Da lonjura da Fronteira, o casal mal sabia que uma Guerra, que se diria mais tarde como Mundial, afetara tanta gente. Em 1919, meses após o último canhão expelir pólvora na Europa, uma menina nascia em Montevidéu.
Hebe Helena Labarthe (ganharia mais tarde o Martelli no sobrenome, por conta do marido) foi, assim, nascida no Uruguai e lá viveu seus primeiros anos. A mãe recorreu a Montevidéu por conta da assistência médica melhor e por isso, e não por preferência, a menina nasceu uruguaia.
Na vida adulta, a parte um certo grau de fluência no idioma castelhano, esse fato não pesava nos sentimentos de Hebe. Ela adotara a nacionalidade brasileira com fervor e até se irritava com quem a perguntava sobre a peculiaridade.
“Eu não sou uruguaia coisíssima nenhuma, sou brasileiraaaa!”, dizia.
As referências sulinas, porém, existiam. Hebe viveu por algum tempo no Rio Grande do Sul, mas a instabilidade política no Estado naquela quadra do século era um problema sério. A Revolução Federalista de 1923, envolvendo chimangos e maragatos, ficaria conhecida como “guerra da degola”. Sangrenta e repleta de ressentimentos, foi uma chaga social cuja pacificação custou a acontecer. O pai da pequena Hebe Helena, advogado, tinha lado nessa história e uma coleção particular de inimigos. Achou por bem “buscar asilo”. Para tanto, na época, não havia necessidade de ir tão longe: a então capital, o Rio de Janeiro, acolheria a família Labarthe: ele, a esposa, Hebe e dois irmãos. Ao fim e ao cabo, o Rio seria a cidade que Hebe adotou para si e em que viveu até seus derradeiros dias.
A Química entrou na vida da jovem por conta de uma inspiração irresistível: o exemplo da cientista franco-polonesa Marie Curie, uma mulher até hoje celebrada por seus feitos e descobertas relativas à radiação e à radioatividade. Curiosamente, Madame Curie esteve no Rio de Janeiro em uma longa viagem durante 1926 – mas não há registros de que Hebe, uma menina nos seus 7 anos, tenha tido algum contato com ela.
Inteligência e coragem fizeram de Hebe notícia na imprensa
Estabelecida a admiração e um foco, aos livros! E a menina não deixou por menos: de largada, foi aprovada para cursar Química Industrial na Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em primeiro lugar. O feito, de tão inusitado, chamou a atenção da imprensa: o jornal O Globo, à época, publicava sem pouco assombro que “pela primeira vez uma mulher era aprovada em primeiro lugar para Química”.
Segundo um catálogo de pesquisadores da Química editado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia em 1976, Hebe colou grau como bacharel em Química Industrial em 1949. A essa altura da vida, ela já era casada e tinha um filho, Carlos Fernando. A segunda, Regina Martelli, nasceria em 1950. O marido, também químico, era Itálico Martelli.
“Era uma casa de gênios!”, assevera Regina.
Tocada pela modéstia, Regina é uma celebridade no Rio de Janeiro como jornalista e consultora de moda. Por anos ela vestiu atores, apresentadores e repórteres que apareceram nas telas de TV de todo Brasil pela Rede Globo. Mas Regina não via futuro em seguir a Química. Até como defesa, diante da genialidade dos pais, refugiou-se na Comunicação. O irmão, de precoce partida, era um jovem com talento literário e uma fieira de conflitos: passou de escola em escola, entre as melhores da Zona Sul do Rio, em busca de um ar que fosse respirável para suas pretensões intelectuais.
A família Labarthe Martelli vivia em Copacabana, na rua Dias da Rocha. É uma rua relativamente tranquila, na altura do posto 4. Calçadas de pedra portuguesa, amendoeiras cujas raízes indomadas rompem o asfalto. Mais perto da pedra que do oceano, nem de longe é a preferida pela algaravia de turistas que se move rumo ao sol e à areia grossa da praia. A calmaria da rua, porém, não entrava no apartamento do Edifício Shangri-la. A vida acadêmica e o desassossego, traços da personalidade de Hebe, a deixavam inquieta. Ela faria, então, algo que era absolutamente incomum para as mulheres do seu tempo: sem gritos ou grandes brigas, sem uma razão aparente, decidira-se pela separação. Na impossibilidade do divórcio, fazia-se o desquite – palavra maldita para as bocas da época e motivo de surpresa nas rodinhas conservadoras. Hebe e família davam de ombros.
Regina lembra que a independência sempre foi inegociável para Hebe.
“Mamãe sempre fez o que quis, essa era a verdade. Ela fez mestrado em San Diego, na Califórnia, depois doutorado na Sorbonne, na França… Pegava e ia, deixava a gente com papai. A gente ficava super bem cuidado, nunca teve trauma nem nada. Mas ela não tinha dúvidas… ía”.
Mente cartesiana e foco na resolução dos problemas
A mente cartesiana de Hebe, qualidade própria das Ciências Exatas, causava estranheza em muita gente (e confusões).
“Mamãe às vezes, antes de conversar, já saía brigando. O pessoal que trabalhava nos bancos adorava ela”, ri a filha, ironizando o sangue quente da mãe.
Quem a visse discutindo com seu gerente, talvez contraísse uma visão errada do que era Hebe. Se não fazia o estilo da mãe que põe fita mimosa no cabelo da filha e nem era dada a mesuras, ela sabia a hora de agir e tinha na família uma causa: foi uma apoiadora incondicional. Se o temperamento era forte, a culpa era do sangue platino que corria nas veias e apimentava seu pragmatismo. Ao ser direta e objetiva, parecia sempre estar “um tom acima”.
“Minha mãe era uma pessoa extremamente animada, mas era rígida. Eu saí igual a ela. Se a gente apresentava um problema, ela respondia: ‘então, o que vamos fazer para resolver?’. Não tinha muito essa de ‘filhinha, coitadinha…’. Ela era uma pessoa pouco afetiva, apesar de a gente sempre poder contar com ela”, descreve Regina.
Na Química, Hebe não seguiu o estudo da radiação, como Marie Curie. Foi na bioquímica que ela se encontrou. Em mais uma amostra do espírito sem amarras, em dado momento dos anos 1960 a pesquisadora receberia um convite do grupo de colegas que conhecera na Universidade da Califórnia: integrar uma comitiva científica que faria uma incursão pela Amazônia. Proposta aceita, é claro.
Nessa viagem à floresta, Hebe encontraria o que é possivelmente seu trabalho de pesquisa mais relevante. Meses depois de retornar do Norte brasileiro, a grande conquista: a badalada revista Nature publicaria, em 1º de dezembro de 1967, um artigo científico intitulado “Oxidation of Sulphonic Compounds by Aquatic Bacteria isolated from Rivers of the Amazon Region” – Oxidação de componentes sulfônicos por bactérias aquáticas isoladas dos rios da Região Amazônica, em tradução livre.
A descoberta impactaria ainda por muitos anos. Revistas de generalidades como a Manchete, populares nos anos 70 e 80, volta e meia reviviam algo sobre as implicações. As bactérias isoladas por Hebe poderiam render soluções de grande interesse econômico para a indústria – e, por conseguinte, ganhos financeiros. Regina recorda que, por várias vezes, interpelou a mãe para que ela fizesse uma espécie de registro de patente da descoberta.
Mas Hebe, resistente, rechaçou a ideia de todas as maneiras. Lembram-se da questão do Uruguai? Nesse ponto vinha à tona outros traços do caráter da professora e pesquisadora platina de berço: o patriotismo e o senso de cidadania brasileira aflorado.
“Sou professora universitária e o governo brasileiro me paga. Eu não posso fazer isso com o governo brasileiro!”
No mês da Mulher, o Conselho Federal de Química (CFQ) resgatará, nesta série de textos em dois episódios, a trajetória de uma personagem decisiva de sua História: a vida e a obra de Hebe Helena Labarthe Martelli (1919-2013), a primeira e única mulher a, até o momento, ocupar a presidência do CFQ. Dotada de uma mente brilhante, competência notória, ousadia e pioneirismo em um ambiente nem sempre amigável para as mulheres, Hebe Helena Martelli marcou uma época na Ciência e contribuiu decisivamente para a consolidação da Química e de seus profissionais no panteão das atividades mais respeitadas pelo Brasil. Boa leitura.
Era no nono andar do edifício de número 50 da Avenida Nilo Peçanha, no centro do Rio de Janeiro, que a doutora Hebe Helena Labarthe Martelli despachava quase todos os dias como presidente do Conselho Federal de Química. A sede do CFQ, própria, não ocupava o andar inteiro do prédio, mas era bastante ampla. Mesas emadeiradas, máquinas de escrever barulhentas e cinzeiros atopetados de filtros de cigarros usados (no Rio, se diz guimbas) esfumaçam o ambiente típico dos escritórios das décadas de 60, 7o ou 80.
Hebe nunca chegou ao CFQ de motorista particular – sempre preferiu ela mesma dirigir. “Pilotava” desde a Zona Sul (morou nos bairros de Copacabana, Ipanema e Gávea ao longo da vida), passando pelo escritório do Conselho no centro do Rio, e se dirigia à Ilha do Fundão, onde atuava como professora nas instalações da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O deslocamento diário, quase 20 km de ida e 20 km de volta, era uma “lonjura” na época. Entre as várias habilidades de Hebe, não estava a condução de veículos automotores.
“Mamãe do nada apareceu com um carro em casa. Tinha comprado um DKW (carro que se notabilizava por abrir a porta da frente no sentido contrário). O carro era rosa antigo, com capota azul escura. O caso é que ela tentou tirar a carteira por umas quatro vezes e foi reprovada. Meu pai ficou cheio disso e levou ela para fazer o teste em Niterói (capital do antigo Estado do Rio de Janeiro) e só assim ela conseguiu”, recorda a filha de Hebe, Regina Martelli.
Sem dar ouvidos a piadas de que “deveriam trocar os postes de Copacabana por outros, feitos de borracha”, lá ía Hebe ao CFQ manejando seu carro. A parte da cidade em que ficava a sede do Conselho é, até hoje, um centro nevrálgico do Rio de Janeiro: o edifício tinha calçada entre o Largo da Carioca, praça de maior afluxo popular, repleta de vendedores e artistas de rua que disputam espaço, formando rodas de gente ao pé do Convento de Santo Antônio, e o então conhecido centro financeiro do Rio, a avenida Rio Branco – uma larga avenida, muito movimentada, inspirada na reurbanização de Paris e até hoje repleta de bancos, joalherias e prédios de escritórios já não tão charmosos.
A política por gosto e a amizade com Carlos Lacerda
Esse ponto icônico do Rio assistiu à ascensão de Hebe Martelli à presidência do CFQ em 1979. Prestigiada no meio acadêmico, reverenciada entre seus pares da Química, não parece ter havido dificuldades para que ela fosse apontada ao cargo – à época, o Ministério do Trabalho definia o comando do CFQ a partir de uma lista tríplice enviada pelo próprio Conselho.
Quem bem conhecia Hebe sabia de uma de suas facetas mais contidas: o gosto pela política. Era militante apaixonada de suas ideias e partidos, mas sempre dentro de um espírito público inamovível. Desde jovem, se deixava envolver pela retórica cortante do ex-deputado e ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, de quem seria amiga ao longo da vida.
“Minha mãe era muito politiqueira…”, ri Regina.
Ela afirma que, por certo tempo, referiam-se a Hebe como “viúva do Lacerda”. Era um termo, desabonador, para descrever mulheres de classe média que apoiavam o líder controverso da época. A política, segundo Regina, nada trouxe de positivo para a mãe do ponto de vista pessoal:
“Ela era combativa, talvez isso a tenha prejudicado algumas vezes no sentido profissional. Acho que ela tinha qualidade para ter chegado a ministra da Educação, ou da Ciência e Tecnologia”.
Estabelecida na presidência do CFQ, Hebe estava decidida a deixar uma marca. Era uma mulher muito bonita e imponente, loura e de sorriso largo. Facilmente notada em qualquer ambiente. Eventos de que ela participava, desde sempre ganhavam “perfil solene”. Era reconhecida pelo bom gosto ao vestir e pela maquiagem esmerada, em harmonia com as tendências da época.
“Não diria que ela era vaidosa, afinal isso pode até ser visto como pejorativo”, relembra o conselheiro federal de Química Gil Anderi da Silva. Anderi ocupara um assento no plenário do CFQ entre 1976 e 1980, acompanhando de perto um trecho da primeira gestão de Hebe.
O conselheiro federal prossegue:
“O que a doutora Hebe possuía era um senso aprofundado da relevância do cargo que ocupava”.
E assim era feito. Hebe se sentia prestigiada por presidir o CFQ em um momento histórico. Ao final dos anos 80, a Química era um dos setores mais fulgurantes no crescimento industrial brasileiro. Havia demanda inesgotável por profissionais: o setor fervia desde a criação do pólo petroquímico do grande ABC, em 1972. A ela, seguiam-se ainda outras, como a dos pólos de Camaçari (1978) e Triunfo (1982).
Solenidades, imposição e Química ao sabor do Brasil que cresce
A liturgia era uma determinação e Hebe fez do CFQ algo a sua imagem e elegância. Sem jamais cair na armadilha da frivolidade, ela equipou o conselho de peso institucional suficiente para conduzi-lo a patamares mais altos. Quem via o glamour dos eventos memoráveis ou a qualidade da prataria e dos cristais dos jantares, poderia ignorar que, sob Hebe, o CFQ ficara mais conhecido de políticos e autoridades. Assim, as decisões políticas de sua gestão deixaram evidenciado um projeto grandiloquente para o CFQ e para a Química no Brasil. Nada que fosse extravagante ou megalômano mas, ao mesmo tempo, condizente com o pensamento nacional-desenvolvimentista que embalava os anos 70.
Na presidência de Hebe, o CFQ daria início à aceleração na criação de Conselhos Regionais de Química (CRQs). Ao longo de seis anos, ela se envolveu diretamente no nascimento de três deles: o CRQ VIII (Sergipe); o CRQ IX (Paraná) e o CRQ X (Ceará). O processo teria seguimento na gestão seguinte, quando os outros 11 CRQs que hoje existem seriam criados. Não se pode negar, porém, que o norte estratégico de aproximar o Sistema CFQ/CRQs dos químicos e da sociedade fora definido por ela.
Em se tratando de estilo, Hebe é rememorada como interlocutora sensata, porém direta. A articulação para a criação de um novo CRQ nem sempre é simples. Em analogia simples, é como a criação de um novo Estado ou Município. Implica em renúncia de poder e de recursos de parte do CRQ de origem e, ao mesmo tempo, demanda organização especial de parte do CRQ que nasce. Cláudio Sampaio Couto, presidente do CRQ X, relembra o apoio de Hebe quando da criação daquela nova autarquia, em 1983.
“Ela era uma pessoa muito alegre, muito boa. Atendia muito bem à gente. Foi uma administração democrática, guardadas as proporções, semelhante a que se tem hoje com o professor José de Ribamar (Oliveira Filho, atual presidente do CFQ). Ela deu início a um processo muito importante, de administração mais delegada”, relembra Couto.
Mas nem só de expansão do Sistema CFQ/CRQs, se fez a gestão de Hebe. Foram várias as medidas que impactaram o CFQ por décadas. Na sua administração, o plenário aprovou a Resolução Normativa nº 51 (RN 51/1980), que identificava as empresas e setores que pertencem à Química; a importantíssima RN 55/1981, que estabeleceu o Regimento Interno do CFQ, em vigência até hoje; a RN 64/1982, que criava o Fundo de Auxílio à Fiscalização; a RN 68/1983, que estabelecia normas para cobranças da taxa de serviço de Anotação de Responsabilidade Técnica; a RN 73/1983, que apontava diretrizes para a eleição de conselheiros federais; a RN 74/1984, que definia penalidades para infrações de parte dos profissionais; a RN 82/1984, que determina o registro de professores de magistério superior nos CRQs, entre outras.
Tragédia pessoal e despedida do CFQ
Depois de seis anos, no final de 1985, findado o segundo mandato diante do CFQ, Hebe deixaria o Conselho. Já com 66 anos, uma tragédia familiar acometeria a presidente. Ela estava a bordo de um barco no litoral da Bahia quando recebeu uma notícia assoladora: seu filho mais velho, Carlos Fernando Labarthe Martelli, morrera, aos 39 anos, dentro do apartamento em que morava no Rio. Sem recursos tecnológicos, contatar alguém que estava em uma embarcação era algo bastante complexo em 1985. Entre telefonarem para a autoridade portuária, contatarem o barco via rádio, Hebe voltar para terra firme e pegar um avião da Bahia para o Rio, foram dois dias em que a família tivera de lidar com a situação na ausência dela.
De toda forma, não se sabe se o dissabor da perda familiar teve influência na decisão de Hebe em deixar a presidência do CFQ – o mais provável, segundo a filha dela, é que não haja relação. Mas fato é que ela desatou suas fortes conexões com o Conselho a partir de 1985.
O Conselho era uma parte da vida de Hebe, mas as paixões, talvez as maiores, eram a Química e, particularmente, a docência. Na proporção em que a carreira acadêmica avançou, ela foi absorvendo cargos e responsabilidades junto à Escola de Química da UFRJ.
Um dos amigos que Hebe conquistou nessa caminhada foi o professor emérito da Escola de Química da UFRJ Vitalis Moritz. A exemplo de Vitalis, ela também era professora emérita da instituição.
“A professora Martelli foi, em 1970, uma das criadoras do curso de pós-graduação em Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos da UFRJ. Na ocasião da mudança da Escola de Química da Praia Vermelha para a Ilha do Fundão, ela foi a coordenadora. Na época, o curso era o único do Brasil com atuação específica na área de processos químicos biotecnológicos”, relembra o professor.
O brilho de Hebe na Escola de Química da UFRJ não foi um caso isolado. Por uma dessas coincidências que ocorrem em determinado tempo e local a cada centena de anos, o Rio de Janeiro da última metade do século 20, tendo a UFRJ como epicentro, atraiu diversas químicas lendárias. Na companhia de Hebe Martelli, transitaram mentes iluminadas como Aïda Espínola, Eloisa Biasotto Mano e Anita Dolly Panek. É motivante notar que, nas décadas de 70, 80 e 90, o empoderamento feminino já era regra na Química do Rio de Janeiro – muito antes de virar tendência na sociedade.
Os últimos dias: destino pregando peças e afetos elevados
Em sala de aula ou diante de seus orientandos, Hebe tinha um jeito especial de forjar químicos talentos. Dentre esses alunos, um se destacou: o atual conselheiro regional de Química da 3ª Região (CRQ III), Daniel Pomeroy.
Por simples questões de afinidade, Pomeroy foi o aluno escolhido por Hebe. A convivência entre orientadora e discente extrapolou, em muito, uma mera relação acadêmica. Pomeroy foi acolhido pela professora como alguém de casa. Segundo Regina Martelli, após a morte do filho, Hebe direcionou sua afeição a Pomeroy – carinho retribuído à altura, sem restrições, pelo então estudante:
“A relação era de mãe e filho”, define ele, que emenda:
“Era minha mãe universitária”.
Formado em 1980, Pomeroy era um jovem estudante em busca do mestrado. Foi monitor, auxiliou Hebe nas pesquisas dela e desse convívio brotou uma amizade filial e genuína. Como orientando, fazia o tipo “hóspede do sofá da sala”. Era tempo de dar vazão à famosa “tese escrita”, terror de dez entre dez jovens acadêmicos. O estratagema de Hebe era levar Pomeroy para sua casa. Ela ia dormir enquanto ele trabalhava no texto durante a madrugada. Ao amanhecer, ela pegava o papel com os escritos e fazia a crítica, anotações e recomendações. Inebriado de sono, o aluno prestava atenção nos apontamentos para recomeçar tudo outra vez.
“Professora Hebe era durona, não tinha esse negócio… Na hora de escrever a tese, ela era muito exigente. Com relação aos experimentos, a mesma coisa… Mas ela queria sempre que as pessoas evoluíssem. Era fantástica”, derrete-se.
Ele conta que, na companhia dela, desenvolveu trabalhos que levaram a patentes relacionadas ao estudo das leveduras. O amor maternal que envolveu Hebe e Pomeroy seguiu ao longo do tempo e transcendeu até a morte: ainda hoje, ele mantém na sala de casa um quadro com a fotografia de Hebe. Na imagem, ela aparece de jaleco, numa representação-síntese da professora e pesquisadora.
Pomeroy cumpriu à risca os deveres de filho. As visitas à mestra em seu apartamento da Zona Sul do Rio foram um hábito constante até os últimos dias dela. Ironia amarga do destino, a mente clara, sistemática e racional de Hebe se turvou. O Alzheimer se apoderou do sistema nervoso dela. As memórias se acinzentaram, a mobilidade se reduziu, mas Pomeroy afirma que ele fora, até o fim, um dos poucos visitantes a quem ela reconhecia de alguma forma.
Fragilizada, a senilidade de Hebe ganharia a companhia de uma tosse persistente. Era uma pneumonia, que já se apoderava de seus pulmões. Morreria em casa, na madrugada, antes de o primeiro raio de sol queimar a areia da praia. Era 2013, Hebe estava a meses de completar os 94 anos.